A Máquina do Mundo e Fernão
de Magalhães
Eis
aqui as novas partes do Oriente
Que
vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo
a porta ao vasto mar patente,
Que
com tão forte peito navegais.
Mas
é também razão que, no Ponente,
Dum
Lusitano um feito inda vejais,
Que,
de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho
há de fazer nunca cuidado.
[…]
Mas cá onde mais se alarga, ali tereis
Parte
também, co pau vermelho nota;
De
Santa Cruz o nome lhe poreis;
Descobri-la-á
a primeira vossa frota.
Ao
longo desta costa, que tereis,
Irá
buscando a parte mais remota
O
Magalhães, no feito, com verdade,
Português,
porém não na lealdade.
Desque
passar a via mais que meia
Que
ao Antártico Polo vai da Linha,
Dũa
estatura quase giganteia
Homens
verá, da terra ali vizinha;
E
mais avante o Estreito que se arreia
Co
nome dele agora, o qual caminha
Pera
outro mar e terra que fica onde
Com
suas frias asas o Austro a esconde.
Luís de Camões, “Os
Lusíadas”, X, 138; 140-141
No longo episódio da
Ilha dos Amores, que representa cerca de vinte por cento d’”Os Lusíadas”, há
vários momentos marcantes que reforçam o seu carácter simbólico de prémio “bem
merecido” pelos “trabalhos tão longos”
(IX, 88).
Depois do
casamento entre as ninfas e os navegantes, com os nossos heróis a serem
divinizados, isto é, elevados ao estatuto dos deuses, imortais – “esforço e arte /
Divinos os fizeram, sendo humanos” (IX, 91) –, acontece um banquete, durante o qual uma
“bela ninfa” canta os futuros feitos dos Portugueses.
Téthis conduz, então,
Vasco da Gama ao cimo de um monte, onde lhe mostra a chamada “máquina do
Mundo”, revelando-lhe, no orbe terrestre, os lugares onde os lusos hão de
praticar grandes obras e o que será o Império Português.
Nesta
visão, surge o grande feito da viagem de Fernão de Magalhães, o herói cujas
origens estão em Paço Vedro de Magalhães, concelho de Ponte da Barca.
Português
no feito, mas “de seu Rei mostrando-se agravado”, será ao serviço de Castela
que Magalhães “caminho há de fazer nunca cuidado”.
E,
em Puerto de San Julián, verá homens de uma “estatura quase gigantesca”, os
nativos de pés enormes, a que o
navegador chamou “Patagónios” ou “Patagões”, termo que estaria na origem da
designação da região onde se encontravam, a Patagónia, bem lá no sul do
continente americano.
Até
que, “mais avante”, há de descobrir, ao longo de novembro de 1520, a passagem
para o outro lado, através de um “Estreito que se arreia / Co nome dele agora”,
o famoso “Canal de Todos-os-Santos”,
agora dito “Estreito de Magalhães”. E, chegados ao “outro mar”, que estava
calmo, “Pacífico” lhe chamou, nome que substituiria o de Mar do Sul, que Balboa
lhe dera, quando o avistara, uns anos antes, no Panamá.
Estamos
perante o auge da glorificação: “comovido / De espanto e desejo” (X, 79), Vasco da Gama vê o
que só aos deuses é dado ver. É a glorificação simbólica do conhecimento, do
saber proporcionado pelo sonho da descoberta.
Ao ser elevado acima
das categorias do tempo e do espaço e ao ser proclamado senhor do “Saber, alto
e profundo, / Que é sem princípio e meta limitada” (X, 80), o herói recebe a
coroação máxima. Com esta iniciação ao conhecimento ou Sapiência Suprema do
Universo, passa do mundo profano, vulgar, para um mundo sagrado.
O
“bicho da terra tão pequeno” (I, 106) vence, afinal, as suas próprias
limitações e vai além “do que prometia a força humana” (I, 1), num verdadeiro
hino ao orgulho humanista
do Renascimento.
Podemos, igualmente,
aproximar a máquina do Mundo da temática amorosa. De facto, o Amor é a força
capaz de corrigir o caos e de restabelecer a Harmonia e, por isso, guiado por
Téthis e pela força do Amor para contemplar a “máquina do Mundo”, o “felice
Gama” (X, 75), agora divinizado, ouve o convite da deusa:
“Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais” (X, 76).
Cabe ao homem, por
meio de seus esforços, por meio do Amor, impor a si e àquilo que está em seu
redor uma visão ordenada da Vida…
A Organização